Destino: naufrágio
Uma História de Ouro


Revista Mergulho, Ano XIII - Nº 163 - fevereiro/2010
Texto Maurício Carvalho
 

Muita divulgação é feita do resgate de grandes tesouros, e tanto na mídia, como de um mergulhador para outro, as histórias de buscas, sucessos e fracassos que envolvem essas empreitadas atraem o público de uma maneira geral. O brilho do ouro ou o mistério que um bom mapa de tesouro pirata provoca, tornam garantido o sucesso para suas histórias. Algumas delas já foram amplamente divulgadas e documentadas (Veja quadro 1).

No entanto, pouco do público brasileiro e mesmo os mergulhador conhecem o fato de que um dos maiores e mais difíceis resgates de naufrágio do mudo, ocorreu nas frias águas de Arraial do Cabo. Uma história até difícil de acreditar, tantas as agruras que o trabalho impôs.
 
Enseada dos Ingleses, em Arraial do Cabo,local do naufrágio da fragata Thetis

A FRAGATA THETIS
A fragata inglesa H.M.S. Thetis, de 46 canhões, retornava à Inglaterra com um grande carregamento de barras de ouro e moedas de prata e cobre (810.000 dólares - valores da época), provenientes de comerciantes das colônias inglesas no Pacífico e da coleta de impostos da coroa.
No dia 05 de dezembro de 1830 a Thetis deixou o porto do Rio de Janeiro com destino a Inglaterra, mas devido a um erro de cálculo na navegação e à piora das condições do tempo, acabou chocando-se, às 20 horas, com a Ilha de Cabo Frio, extremo sul de uma perigosa proeminência na costa carioca, que por isso, é uma das áreas de máxima incidência de naufrágios no Brasil.
O violento choque da Tethis contra os íngremes penhascos da ilha quebra imediatamente a mastreação. O vento, agora muito forte, empurou a embarcação ao longo do costão, até que o casco entra em uma pequena enseada - hoje conhecida como Saco dos Ingleses.
Os sucessivos choques provocam grande entrada de água no navio, que sem condições de ancorar, devido à grande profundidade, afundou na noite escura. Muitos dos tripulantes agarram-se às rochas, escalando a montanha como forma de salvação.
No dia seguinte e com muito custo, homens da tripulação conseguiram chegar caminhando a Cabo Frio, de onde foi enviada mensagem a cavalo até a corte. Tomado conhecimento do acidente e da perda do navio e todo seu conteúdo, o comandante da esquadra inglesa na América do Sul, se dirigiu de imediato ao local com uma pequena frota, encontrando 270 dos 300 tripulantes apenas com pequenos ferimentos.
Um dos comandantes dessa frota, o experiente capitão inglês Thomas Dickinson, já havia presenciado resgate de naufrágios em outras partes do mundo, assim, depois de algumas semanas estudando as características locais, desenvolveu um plano para resgatar o quanto pudesse da Thetis.
A enseada dos ingleses é cercada por penhascos com mais de 50 metros de altura, mas é desprotegida do forte vento sudoeste. As águas normalmente frias da ressurgência de Arraial do Cabo (até 9 ºC), atingem altas profundidades rapidamente.

 

O RESGATE
O plano de Dicknson envolvia a construção de um sino de mergulho, que seria suspenso sobre o sítio do naufrágio por um sistema de páus-de-carga, construído com restos salvos dos mastros do navio.
O Primeiro sino, que abrigaria dois mergulhadores, foi construído a partir de dois tanques de água de um dos navios ingleses, reforçado por barras e onde se abriu seis vigias de vidro. Porém, com mais de 4 toneladas, tornou-se difícil de manejar e depois de dois acidentes um sino menor foi construído. Ambos eram abastecidos de ar por um tubo alcatronados, com válvula na parte superior. O ar fresco era produzido por uma bomba d'água adaptada do navio Lightning.
Todo sistema seria erguido por mastros e cabrestantes. Para isso, cabos teriam de ser cruzados por praticamente toda a enseada e presos em argolas fixadas nas rochas. Estas argolas até hoje testemunham o trabalho épico dos ingleses.

 
Uma das argolas deixadas pelos marinheiros ingleses durante os trabalhos de recuperação da carga da fragata Thetis
 
O SALVAMENTO DO TESOURO
Na praia da Ilha de Cabo Frio (Arraial do Cabo) foi montado um acampamento e posteriormente uma pequena vila de sapê, com oficinas de carpintaria para dar suporte aos trabalhos. A atividade dessa vila, batizada como Saint Thomas, provavelmente originou a cidade de Arraial do Cabo.
Os marinheiros ingleses executaram todos os tipos de trabalhos, abrindo trilhas até o alto dos penhascos, fixando as argolas e mesmo mergulhando até os destroços nos sinos.
Dickinson planejou construir uma plataforma ao nível do mar, onde receberia o material recuperado pelos mergulhadores do sino que se erguia até 12 metros acima do nível da águas. Para subir os salvados até o alto dos penhascos, foram explodidas diversas rochas e construída uma rampa, por onde uma carroça puxada por mulas servia de elevador.
Os primeiros mergulhos desobstruíram os destroços abrindo caminho para os maiores valores.
 

Quadro 1

O Nuestra Señora de Atocha era um galeão espanhol perdido em setembro de 1622 no litoral da Florida devido a um Furação. Seu tesouro incluía 24 toneladas de prata e 125 barras de ouro. Apenas cinco tripulantes sobreviveram.
Uma pesquisa de décadas permitiu que em 1985 a equipe da Treasure Salvours lideradas por Mel Fisher localizasse parte do tesouro. Um pedaço dessa história pode ser vivenciada na Florida, no museu da companhia, onde é permitido aos visitantes até tocar em uma das barras de ouro ... tocar sim, levar não.

O Central América é outro tesouro de encher os olhos. Este vapor americano, trazia de volta da Califórnia muitas pessoas enrriquecidas com ouro, quando em 1857 um furação o pois a pique ao largo da Carolina do Sul. Calcula-se que havia a bordo mais de 3 toneladas de ouro em barras e em moedas (Double Eagle - primeira moeda de ouro cunhada nos Estados Unidos)
Em 1987 a Columbus América Discovery, localizou e, utiliando robôs subaquáticos, resgatou grande parte do tesouro a mais de 2000 metros (O Navio de Ouro, Gary Kinder, editora Record).

O Whydah talvez tenha ficado mais conhecido pelo livro O Principe Pirata ( Editora José Olympio, 1995) do que por seu tesouro. A história envolvente, conta as pesquisas, fracassos e obstinação do pesquisador Barry Clifford, que depois de muito sofrimento, finalmente localizou em 1984 o navio negreiro Whydah; que foi apresado e utilizado como navio pirata por Samuel Bellamy.
Com "incontáveis" tesouros, já que o butim nunca foi bem determinado, o navio acabou por naufragar devido a uma tempestade em 1717 ao largo de Cabo Cod, nos USA.

Nustra Señora de las Mercedes pode ser o último grande tesouro resgatado na era romântica, pois está sendo afiadamente disputado na justiça pela companhia Odssey Marine Exploration e o governo da Espanha, entre outros.
Segundo a história, essa Fragata espanhola levava 17 toneladas de ouro do Peru - meio milhão de moedas de ouro e prata no valor de mais de 500 milhões de dólares - para Cádis na Espanha, quando em 1804 foi afundada por uma fragata britânica ao largo da costa de Portugal.
A companhia americana Odyssey que localizou o naufrágio e extraiu o tesouro, afirma que não há provas da identificação do naufrágio, mas Espanha e Peru já se autodeterminaram proprietários do tesouro e até navios de guerra já foram utilizados para obter resultados. A disputa está nos tribunal.


Frota de Vigo (Espanha)
Em 1702 diversos galeões espanhóis, retornando das Américas com grande carga de ouro, prata e pedras preciosas, foram interceptados pela frota anglo-holandesa. Os navios espanhóis se refugiaram na baía de Vigo onde uma feroz batalha foi travada e muitos desses galeões afundaram.
O tesouro jamais foi recuperado e não se sabe se os espanhóis o escoaram por terra antes do combate, mas as buscas continuam. Um dos maiores pesquisadores da região foi o belga Robert Sténuit. Um pouco da saga consta no livro: Galeões de Ouro, 1978 - Robert Sténuit, colecção Gigantes da Aventura, Editora Verbo.


 

Sistema de cabos para erguer os sinos
 

OS MERGULHADORES
Escravos e caboclos mergulhadores forma testados, mas os marinheiros ingleses é que assumiram a principal carga do serviço. Eles se revezavam em trabalhos de até três horas utilizando grossas vestimentas de lã. Mergulhavam até 36 metros e muitos sintomas de dores pelo corpo e fadiga foram relatados, provavelmente associadas a problemas descompressivos. As águas muito frias e o mar agitado também não auxiliavam muito.
Apesar de todas as dificuldades locais, conturbações políticas e acidentes que produziram a perda do equipamento e de vidas, o ouro, prata e muitos canhões continuavam a ser recuperados, o trabalho era lento mas contínuo e persistente.

 
Os sinos construídos por Dicknson a partir da caixas d'água de ferro fundido
 
FIM DOS TRABALHOS
Em março de 1832, o Comandante Thomas Dickinson foi substituído no comando da operação. Após um ano ele e seus homens estavam doentes e exaustos. Em julho de 1832 os trabalhos de resgate foram oficialmente encerrados.
Oficialmente foram recuperados 15/16 décimos de todo o tesouro registrado no manifesto de bordo. Lembrando que, no período, o contrabando de ouro, prata e pedras preciosas era muito comum e em diversos naufrágios pelo mundo já foi recuperado mais do que o dobro do manifesto de bordo.
Além dos metais nobres, grandes peças como canhões, âncoras e estruturas de cobre foram salvas.
Apesar de tudo, pouco crédito foi dado a Dicknson e ele teve de recorrer a um tribunal para obter o pagamento por sua empreitada, terminando a vida magoado com seus superiores. Parece que o ouro provoca nos homens essas disputas, e isso o tempo não muda.
Em 1978 outro trabalho de escavação na área foi realizado, parceria de dois pesquisadores, um belga e outro brasileiro, mas os reais resultados desse trabalho não são conhecidos, porém sabe-se que muitas peças pequenas ainda são encontradas.
Em busca desta fantástica história alguns mergulhadores de naufrágio escalaram os costões da enseada, onde localizamos muitas das argolas ainda cravadas na rocha.
Sem dúvida nenhuma, uma atividade um pouco diferente do que os mergulhadores estão acostumados, mas típicas dos pesquisadores de naufrágio, ir a onde a história está.
A epopeia completa do resgate, destino do tesouro e personagens pode ser encontrada no Site www.naufragiosdobrasil.com.br - especial da fragata Thetis.
 

 

Veja mais em:
Naufrágio da Thetis
Especial Thetis

 

Maurício Carvalho é biólogo, instrutor especialista em naufrágios, autor do SINAU (Sistema de Identificação de Naufrágios) e responsável pelo site Naufrágios do Brasil.

 

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