Destino: naufrágio
O Prince of Wales

A perigosa costa e diplomacia do Brasil


 
Revista Mergulho, Ano XV - Nº 187 - feveiro/2012
Texto: Maurício Carvalho
 

Qualquer mergulhador que estude um pouco de história, rapidamente aprende de existem pelo menos dois locais no planeta de navegação muito difícil. As águas acima dos paralelos 30º e a diplomacia internacional.
Os dois fatores estiveram juntos numa das maiores crises diplomáticas de nosso país. A chamada Questão Christie provocou a ruptura das relações diplomáticas entre o Brasil e a Inglaterra. Ela teve como um dos gatilhos, o naufrágio do Prince of Wales na costa do Albardão, no extremo do Rio Grande do Sul.

A PERIGOSA COSTA DO RIO GRANDE DO SUL
Nesta coluna já comentamos várias vezes que o local da costa do Brasil de maior incidência de naufrágios é a inóspita costa do Rio Grande do Sul, só a praia do Albardão, entre Rio Grande e o Uruguai, possui mais de 220 km de extensão e é considerada por alguns, como a praia mais longa do planeta. Ventos fortes, condições de temperatura e correntes, associados a uma costa baixa e sem referências visuais claras, provocaram o naufrágio de mais de 320 embarcações. Palavras como Mostardas, Solidão e Albardão, alguns dos farois da região, até hoje causam arrepios nos capitães de navios.
Este foi o cenário de um dos mais dramáticos naufrágios de nossa costa e a causa de um dos mais graves incidentes internacionais.

 

A SITUAÇÃO POLÍTICA DO BRASIL
Durante o 2º Reinado de 1840 à 1889, o Brasil contrapôs potências estrangeiras, principalmente a Inglaterra, devido a forte pressão exercida por elas contra o tráfico de escravos, comércio ainda muito lucrativo em nosso país. As diversas ações contra o tráfico em nossa costa, com afundamento de negreiros e a ameaça de fechamento de nossos portos pelos navios da armada inglesa, criaram na população brasileira forte sentimento antibritânico.

O PRINCE OF WALES
Este veleiro mercante de quatro mastros foi construido em 1857, fazia a linha de carga para a América do Sul, com escalas regulares no Rio da Prata, Brasil e eventualmente Caribe.
Em abril de 1861 zarpou de Glasgow, na Escócia, com destino a Buenos Aires. Transportava como carga principal carvão de pedra, louças, fazendas, azeite e vinho.
A travesia do Atlântico foi tranquila e no início de junho já deixava Porto Alegre com destino a Buenos Aires.

 

Prince of Wales sob a praia do Albardão

 

O NAUFRÁGIO
No dia 07 de junho, devido aos fortes ventos da região o Prince of Wales encalhou em um ponto da deserta praia do Albardão na província do Rio Grande do Sul, a cerca de 80 quilômetros do Arroio do Chuí - ponto do litoral que marca a divisa com o atual Uruguai.
O tempo piorou, o navio adernou e parte da mastreação começou a quebrar.
Os tripulantes e passageiros deixaram a embarcação utilizando cordas esticadas até a praia. Em seguida, alguns deles, seguiram a pé em direção da cidade de Rio Grande, em busca de auxílio para o navio e para os tripulantes e passageiros que continuavam no local.
A partir deste momento do naufrágio os fatos são obscuros e controversos.
Segundo os britânicos: quando no dia 18 retornaram ao local para tentar rebocar a embarcação encalhada, encontraram na praia os corpos de dez tripulantes e constataram que a maior parte da carga havia sido saqueada, que os náufragos teriam sido assassinados e despojados de seus pertences. Os corpos de oito homens, uma mulher e uma menina foram localizados longe dos destroços e alguns estavam enterrados.
Diante da gravidade da situação, comunicaram os fatos ao embaixador britânico no Rio de Janeiro, William Dougal Christie. Este apresentou um protesto ao imperador Pedro II.
Segundo as autoridades brasileiras, que apuraram os fatos: no dia 12, o juiz de paz de Rio Grande informou de que vários cadáveres estavam dando a praia defronte a sua casa no Albardão. O guarda mor da cidade reuniu alguns soldados e seguiram para o local. Ao chegarem no dia 16, o navio já estava destruído na praia, por onde se espalhavam barris e caixotes vazios. Havia apenas um amontoado de destroços, com restos dos camarotes de popa e na proa partes do costado, onde ainda estavam fixadas as letras PRIN de parte do nome do navio.
As autoridades atestaram que no intervalo entre o naufrágio e a chegada dos soldados, desconhecidos em terra, ao se depararem com um naufrágio, cnsideraram a carga como perdida e resolveram apoderar-se dela. Em Porto Alegre, os exames comprovaram que as vítimas teriam morrido afogadas.
Segundo informações locais, até hoje, na praia do Albardão, restos do costado do navio podem ser vistos enterrados em parte em dias de maré baixa.


A QUESTÃO CHRISTIE
As relações entre o Império do Breasil e a Inglaterra, já não caminhava muito bem.
O embaixador britânico William Christie exigia um pedido de desculpas formais e indenização pelo saque do navio e o Império do Brasil se recusava a pagar. Para complicar ainda mais, em 1862 marinheiros bêbados da fragata H.M.S. Emerald, envolveram-se em uma briga com marinheiros brasileiros, ocorrendo uma morte. A polícia do Rio de Janeiro acabou por prender todos até o dia seguinte e as autoridades queriam que os britânicos fossem entregues para julgamento.
Diante dos novos problemas, Sir William Christie exigiu do imperador o pagamento da indenização referente ao Prince of Wales e à prisão dos policiais e marinheiros brasileiros, ameaçando fechar a Baía de Guanabara com navios da marinha britânica. A resposta foi de que o império estaria pronto para a guerra. Imagine!!
Em 1863 uma esquadra inglesa, comandada pelo almirante Warre bloqueou o porto do Rio de Janeiro e aprisionou navios mercantes brasileiros exigindo uma indenização de 3,2 mil libras esterlinas. Agora, quem exigia um pedido formal de desculpas e indenização era o Brasil. Com a negação britânica, o imperador decide romper as relações diplomáticas com a Inglaterra.
Este episódio, conhecido como Questão Christie, é considerado um dos momentos de crise mais marcantes da diplomacia brasileira. A questão diplomática foi arbitrada pelo Rei Leopoldo I da Bélgica e embora tenha havido um parecer favorável ao Brasil, o Imperador mandou pagar as indenizações. As relações diplomáticas ainda continuaram rompidas por dois anos, até o início da Guerra do Paraguai.
É certo que durante o período de 2º Reinado, os ingleses não aceitavam que seus cidadãos fossem julgados por cortes que não as inglesas, mesmo que o crime fosse cometido no estrangeiro. Também é importante ressaltar, que no ano de 1887, naufragou na mesma região o Rio Apa, um dos maiores naufrágios de nossa costa. Segundo o narrado na época: diversos cadáveres nas praias apresentavam sinais de terem sido despojados de seus objetos de valor, inclusive com mutilação de dedos e mãos, além de ter ocorrido também saque das cargas.
A verdade está perdida no tempo e em algum ponto deserto do Albardão. Com um litoral tão extenso muito da história de nosso país passa pelos naufrágios e suas consequências. Conhecer esses fatos faz com que destroços em uma praia deserta ganhem vida diante dos olhos e enriquecem a cultura da nação.


 
 

Maurício Carvalho é biólogo, instrutor especialista em naufrágios, autor do SINAU (Sistema de Identificação de Naufrágios) e responsável pelo site Naufrágios do Brasil.

 

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