UMA HISTÓRIA DE
FERRO E SANGUE
Nestor Magalhães
Matéria parcialmente publicada na Revista Mergulho nº 125 e no jornal ZH.
Texto e fotos cedidas pelo autor
 
 
Foi a arma que quase derrotou a Inglaterra e por muito pouco, não reescreveu o final da II Guerra Mundial.
Os submarinos alemães, os Unterseeboote ou simplesmente os U-Boats, foram engenhos que de forma única souberam explorar o terrível reflexo do medo ancestral do homem: de que pode ser atingido por algo que não vê. Uma ameaça constante, invisível mas real.
Tão real que em um mês de 1940, no Atlântico Norte, os U-Boats afundaram 66 navios e perderam somente um submarino. Uma conseqüência de ações de grande audácia tais como a do Comandante Otto Kretschmer que mantinha o seu U-99 na superfície durante a noite, no meio do comboio, torpedeando a vontade os navios enquanto os escoltas na sua caça, saturavam as profundezas com toneladas de explosivos. Ninguém jamais procuraria um submarino atacando na superfície e muito menos no meio do comboio. A partir de agosto de 1942, silenciosamente, eles vieram até nossas águas. Tão perto que quando à noite na superfície, carregando suas baterias, os marinheiros podiam observar as luzes de Recife, de Salvador e do Rio de Janeiro. Afundaram então os navios brasileiros e aliados aos magotes.
Quase por esta época, alguns meses antes, como lobos, infestaram o Atlântico junto a costa leste dos Estados Unidos. Em seis meses deram cabo de quase 500 navios, perdendo apenas seis submarinos. A maior derrota da história da Marinha americana.
Mas os Aliados disponibilizaram imensuráveis recursos e avançada tecnologia fazendo com que o caçador virasse caça. Logo os U-Boats começaram também a serem destruídos quase à extinção. Daqueles 1.167 submarinos produzidos pelos estaleiros, 757 foram afundados, capturados, bombardeados em seus portos ou simplesmente sucumbiram em acidentes. No início de 1945, de cada três U-Boats que partiam em patrulha, dois nunca mais voltavam. Era a morte de uma elite.
Nunca na história de todas as guerras uma força sofreu tal percentual de baixas e continuou lutando e ameaçando o inimigo até o fim, obrigando aos Aliados reterem milhares de homens, aviões e navios em situação de constante emprego até maio de 1945.
 

O ponto do U-352 em frente ao litoral de
Morehead, North Caroline, USA.
E mesmo naqueles dias negros sempre haviam voluntários orgulhosos de integrar a Ubootwaffe, uma comunidade unida pelo destino, na qual cada homem "depende do outro e, portanto, tem um compromisso a cumprir com o outro - Schicksalgemeinschaft"; como dizia seu comandante, o Almirante Karl Doenitz.
 Ao findar a II Guerra Mundial os U-Boats tinham afundado

Abertura no U-352 danco acesso ao
interior do casco de pressão.
  2.603 navios mercantes e 175 belonaves Aliadas, de porta-aviões e encouraçados a corvetas e lanchas-patrulha, um total superior a 13.500.000 de toneladas.
Estas histórias sempre me impressionaram muito, desde menino. Histórias de ferro e sangue.
Em 2003, já um tanto velhusco, tive a feliz oportunidade de visitar o U-1277, afundado em 1945 ao largo da cidade do Porto, Portugal. Foi uma aventura inesquecível.
Após dois anos de planejamento, nas duas últimas semanas do verão americano de 2006, mergulhei no U-352, afundado em combate em 1942 ao largo da cidade de Morehead (NC) e visitei o U-505 exposto no Museu da Ciência e Indústria, na cidade de Chicago (IL).

 
Um U-Boat sem sorte
O U-352 era um submarino tipo VII C, com 769 toneladas de deslocamento na superfície, armado com um canhão de 88 mm, um de 20 mm e 14 torpedos, comissionado em agosto de 1941. Media 218 pés de comprimento, possuía dois motores elétricos e dois motores diesels e as velocidades máximas de 17,7 nós na superfície e 7,6 nós submerso. O modelo VII C foi o mais comum, o verdadeiro cavalo de batalha da Ubootwaffe. Os alemães construíram cerca de 660 unidades.
Sua primeira missão de combate aconteceu na Islândia onde não conseguiu afundar nenhum navio e foi duramente bombardeado por destróiers ingleses. Mesmo assim conseguiu retornar são e salvo à sua base em Saint Nazaire, França.
Durante o período de reaparelhamento, o porto foi atacado por comandos ingleses que não conseguiram atingir as docas dos submarinos. Entretanto uma bala perdida danificou o periscópio
 

Visão da torreta com saída dos periscópios
e a base do canhão do U-352.
do U-352.
Algum tempo depois mais um golpe de azar: o U-352 manobrando, atingiu acidentalmente o U-552.
Sua segunda missão de guerra ocorreu em águas americanas. Na tarde do dia 09 de maio de 1942, o U-352 patrulhava as águas rasas do litoral da Carolina do Norte quando seu comandante, o Kapitanleutnant Hellmut Rathke observou pelo periscópio um pequeno navio a meia-marcha, nas proximidades do Cabo Lookout. Era o USCG Icarus, um navio patrulha da Guarda Costeira.
Ansioso por combate, Rathke disparou um torpedo contra o alvo escutando pouco tempo após uma forte explosão. Por algum defeito ou incorreta regulagem, o torpedo atingiu o solo submarino. Um tiro curto a 180 metros do Icarus. Sem saber que não havia atingido o navio, o U-Boat manteve o curso e ergueu seu periscópio. O comandante foi surpreendido então ao observar que sua vitima era um navio de guerra, estava incólume e se preparava para contra-atacar rapidamente.
O U-352 foi logo violentamente atingido por uma salva de cargas de profundidade, tão próxima do seu casco que ficou gravemente danificado além de ter um tripulante morto e diversos feridos.
Sem mais nenhuma opção possível e ainda recebendo mais outra salva certeira, Rathke ordenou a emersão. Na superfície o U-Boat foi atingido por intenso fogo de canhões e de metralhadoras pesadas, afundando para sempre alguns minutos depois.
Mesmo metralhados enquanto se debatiam na água, 32 marinheiros e seu capitão conseguiram sobreviver tornando-se os primeiros prisioneiros estrangeiros a serem capturados em águas americanas desde a Guerra de 1812. Quinze homens da tripulação pereceram com o submarino.
 

O comandante (camisa clara) do U-352
Kapitanleutnant Hellmut Rathke.

Rathke e os demais tripulantes sobreviventes
do U-352 sob custódia americana.
 
 

 
Mergulhando no U-352
A costa da Carolina do Norte é um imenso cemitério de navios. Cheia de histórias terríveis sobre naufrágios, piratas, Guerra Civil, tornados e ...U-Boats.
Durante a II Guerra Mundial a ação dos submarinos alemães foi ali tão intensa que a região ficou conhecida como "Torpedo Junction". Neste rico "campo de caça" mais de 100 navios foram afundados ou danificados pelos U-Boats. Também ali está o vapor brasileiro Buarque, partido por um torpedo do U-124, em 14 de fevereiro de 1942. Na cidade de Beaufort está o North Carolina Maritime Museum que relata toda a história marítima daquela região. Existe um pequeno auditório onde é exibido um excelente áudio-visual sobre a ação dos U-Boats na costa leste americana bem como fotos panorâmicas do naufrágio do U-352.


Olympus Dive Center, com muitas peças do U-352.

 

George Purifoy e o autor.
 O U-352 foi descoberto por George Purifoy em 1975. George é o proprietário da Olympus Dive Center, operadora que tem sua sede na cidade de Morehead, NC, e leva regularmente grupos de mergulhadores aos mais interessantes naufrágios da região. Na operadora existe um pequeno museu com muitos objetos coletados por Mr Purifoy durante anos de mergulho no naufrágio do U-352, inclusive um canhão AA de 20 mm. e uma escotilha, ambos em exposição no deck da empresa. A Olympus tem disponível um confortável alojamento para mergulhadores bem como dois grandes barcos operacionais dotados de excelente infra-estrutura.
Foi em um destes barcos, o "Midnight Express", uma lancha com 48 pés, que navegamos até o local do naufrágio do U-352, situado a cerca de 25 milhas ao sul do Cabo Lookout.
Presa a âncora no casco do U-Boat por um mergulhador da tripulação, caímos na água pela lateral em companhia de Steve, meu dupla e instrutor da Olympus.
 
 

Anti-aéreo de 20 mm.
 

Saída do tubo lança-torpedo de popa.
 
Apesar de haver alguma corrente e ondas um pouco incômodas, a água azulada estava agradavelmente morna e a visibilidade muito boa. Iniciamos a descida pela amarra da fateixa, direto, de cabeça e, apesar de o submarino estar a 40 metros de profundidade, logo pudemos observar a longa mancha fusiforme do U-Boat. Uma visão do seu todo, impressionante!
O U-352 repousa adernado 45º a boreste sobre um fundo de areia branca, entre diversos cardumes de pequenos peixes. Todas as suas escotilhas estão abertas mas é arriscada a penetração.
 O seu casco de pressão está muito bem conservado mas o externo tem diversas
 partes desmanteladas, aparecendo em alguns pontos o cavername. Ele teve uma morte violenta. Fiquei ajoelhado na areia junto a sua elegante popa observando detalhes muito claros, exatamente iguais aos do meu U-552, modelo em escala 1/72 que eu tenho lá em casa.
O tubo lança-torpedos da popa está aberto, com a tampa ainda presa e é agora a casa de um colorido peixe-frade. Algumas batidas de nadadeira, sem esforço, e já estamos ultrapassando a escotilha inclinada para carregamento de torpedos na popa. Estava aberta e escura, com um cardume de peixinhos coloridos vadiando protegidos pela sombra. Dava para escutar a música do filme Das Boot (O Barco, Inferno no Mar), "Tan, Dan, DAN, Dan...!" quando passamos sobre sua torre e os alojamentos dos dois periscópios, deliciados pela ausência de gravidade. Navegam pelo meu pensamento nomes como Gunther Prien, Otto Kretschmer, Wolfgang Luth, Erich Topp, Karl Merten, ases lendários dos U-Boats.
 Absorto pelas histórias dos combates, esbarro no casco levantando uma pequena
nuvem de silt e ferrugem. Calma! Alguns metros a frente e já podemos examinar o reparo do canhão 88 mm. Está sem a arma, possivelmente arrancada pelas cargas de profndidade e até agora não localizada por mergulhadores.
Em 1980 muitas granadas de 88 mm., torpedos, cargas de profundidade e objetos diversos foram coletados na areia por mergulhadores da U.S Navy. Entretanto ainda existem três torpedos a bordo. Ossos humanos também foram recolhidos ali por mergulhadores clandestinos bem como um dos seus hélices. Alguns destes ossos apareceram certo tempo depois, expostos em uma loja de mergulho na cidade de Jacksonville, NC. Tal fato motivou protestos por parte do Governo alemão que considerou uma profanação de sepultura militar.
Existem muitos ouriços grudados no aço apodrecido mas quase nenhuma anêmona, esponja ou coral. Que coisa!
Um puxão na mangueira do meu painel de instrumentos, um susto e eu já volto a realidade. É Steve, o meu atento dupla. O ponteiro do manômetro já está no vermelho e eu nem vi. É hora de subir, que pena, que aventura inesquecível!
Levo comigo para sempre esta história de ferro e sangue.
 
 

 

Midnight Express, barco da Olympus Dive Center, com sua simpática e eficiente equipe.
 

 

Nestor Antunes de Magalhães

2º Tenente do Exército Brasileiro, atualmente na reserva, foi instrutor de armamento, munição, tiro e explosivos durante 25 anos.
Atualmente trabalha no Museu Militar do CMS, Porto Alegre, na função de especialista em história militar, armamento, equipamentos, blindados e viaturas. É pesquisador da história da II Guerra Mundial, particularmente a Batalha do Atlântico e a ação dos submarinos alemães neste período.

Integrante do grupo BdU que discute on line sobre U Boats.
Mergulhador 2 Estrelas CMAS desde 1992 com especializações em Naufrágio, Salvatagem, Noturno e

Orientação, tendo mergulhado com destaque em Cancun, Cozumel, Parcel do Manuel Luís (MA), Recife, Salvador, Rio, Sergipe, Florianópilis, Vila Velha e Fernando de Noronha.
Mergulhou em 2003 no U-1277 em Portugal, em 2006 mergulhou no U-352 na Carolina do Norte, USA. e Visitou o U-505, que se encontra em exposição no Museu da Ciência e Indústria em Chicago.

Esta aventura vivida por Nestor foi idealizada e incentivada pelo BdU, um grupo de brasileiros que estuda a ação dos submarinos alemães no litoral brasileiro e em diversas partes do mundo" - BdU - Brazilians Discovering Unterseebote - Grupo de pesquisa histórica sobre U Boats. Maiores informações
 

 
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