O Buraco do Inferno

Revista Mergulhar, ano VI, Nº 49 Agosto/1988

Texto: Sergio costa Fotos: Sergio Costa e Marcus Werneck
 
 
 
Dava mais a impressão de estar entrando numa grande garagem, daquelas tipo lavagem de carro, de tão reta e horizontal que era a parte superior da entrada. Naquele primeiro dia de mergulho, estabeleci que iríamos só fotografar sem ultrapassar a cota dos 30m. Eu e o Werneck já estivamos com bastante tempo de fundo em diferentes profundidades, todas no canto sul do lago.
Depois de passar os primeiros minutos num total delírio por aquele azul intenso e transparente, percebe-mos que no lado oeste abria-se uma grande cavidade na pedra cerca de 35m de fundo. Numa rápida avaliação, resolvemos nos certificar se aquilo que a água transparente nos deixava enxergar era realmente uma abertura. Chegando nos 35m, percebemos que aquela enorme mancha preta era realmente o início de algo talvez bem maior.
Ultrapassada a laje horizontal, percebemos logo que a rocha recuava rapidamente na vertical, o fundo a quase 20m lá embaixo, e a água cristalina nos estimulou a dar uma "olhadinha" naquele possível sifão. A luz que vinha do fundo foi a nossa guia durante a subida no coração da pedra, ficando cada vez mais tênue à medida que subíamos encostados à parede em nossa frente.
Por volta dos 18m, percebi uma certa mudança na transparência da água, fiz sinal para o Werneck que, em caso de encontrar uma bolha, para não tarar o regulador da boca. Mas já em 12m de profundidade, portanto após uma subida de mais de 20m, percebemos que a água tinha piorado, as bolhas que bailam nas paredes estavam soltando sedimentos que começaram a cair. Foi necessário que voltássemos a profundidade de 35m para nos guiarmos pelo clarão da entrada. O mergulho estava no fim, mas a aventura estava apenas começando.


Foto: Marcus Werneck
Uma verdadeira expedição
O carro de reportagem da Mergulhar certamente chegou em Brasília mais cansado do que nós. Após mais de 1.300 km seguidos do Rio, e com uma invejável carga de quase 500 kg, principalmente em garrafas e equipamentos de mergulho, chegamos ao Distrito Federal às 21h, apenas a tempo para receber a notícia que a hora marcada para a ida à caverna seria às 03h30min da madrugada. O profissionalismo não conseguiu segurar os pontos. Tivemos que apelar para a velha e nunca adormecida paixão pelo mergulho. Foi a salvação. No dia seguinte, quer dizer, umas horas depois, estávamos prontos para o início da aventura. Iríamos passar um fim de semana inteiro mergulhando numa furna em pleno cerrado.



Foto: Marcus Werneck

Saímos pela via Estrutural, passando por Brasilândia, seguindo em direção a Padre Bernardo. Saimos do asfalto para pegar a federal de terra que vai para Anápolis e é desta estrada que, entre nuvens de poeira e vários quilômetros de chio, chegamos ao raiar do Sol na boca do Buraco do Inferno. A depressão, segundo o supervisor de mergulho do Grupo de Resgate e Exploração de Cavernas (GREC), Maurício Borges, é uma dolina com rochas de micaxisto e grande quantidade de rocha carbonática.
Esta depressão tem quase 50m do topo até o nível da água do lago que ocupa toda a parte SW da furna numa extensão de cerca de 600m2. Toda a parte seca do fundo é bastante irregular e coberta de vegetação, O acesso ao lago é muito difícil, tanto que as únicas chances de alcançá-lo são o lado SE, onde o caminho, embora íngreme, permite a uma pessoa experiente subir e descer com a ajuda, inclusive, da vegetação abundante. Este lado, porém, dificulta em muito o transporte do material. Por isso, tivemos que optar pela parede de NW, 45m de rocha completamente vertical, parte terminando no lago. Isso porque, a eficiente equipe de apoio do GREC resolveu usar um sis-tema de cordas e roldanas (conhecido como tirolesa) que transportou, seja na ida, seja na volta, provavelmente alguma coisa perto de 500 kg de equipamentos. Quanto às pessoas, todos nós descemos usando o sistema rápido e eficiente de descida, chamado "rapel".
A fauna e o mergulho noturno



Foto: Sergio Costa


Milhares de Lambaris, uma das três
novas espécies de peixes descritas,
que habitam o lago, junto
com tartarugas.

Combinamos que durante o primeiro dia e no horário que o Sol permitisse (embora por somente duas horas), faríamos um trabalho de reconhecimento e documentação fotográfica. Logo observei que as plantas aquáticas - com maior concentração na parte onde o Sol permanece por mais tempo - não existiam abaixo dos 20m de profundidade (pelo menos visualmente).
Com relação à fauna, existe uma certa quantidade de lambaris que se juntam em cardumes sempre que cai algo dentro d'água, chegando até a "beliscar" a pele das mãos e dos pés de quem estiver na água. Reparei, ainda, a existência de outro peixe que me pareceu ser um cascudo, assemelhando-se com o "limpa vidro" dos aquários de água doce.
As grandes vedetes, porém, não apareceram, ou sejam, as tartarugas de grande porte, algumas com 30cm de diâmetro, que o pessoal do GREC já tinha observado em outras ocasiões. Pessoalmente, só cheguei a ver duas bem pequenas e muito ariscas. Para fotografar, não tive outro jeito que não fosse apanhar uma e, segurando-a com a mão esquerda, coloquei-a na frente da câmara e dei o "clik", utilizando o tubo de extensão para macrofotografias. Este exemplar, em um exame mais detalhado, apresentou um defeito em uma das patas traseiras, provavelmente produto do isolamento da colônia.
De volta ao acampamento - muito bem montado - fomos recebidos acolhedoramente. Em breve estávamos dormindo, recuperando um pouco das energias perdidas. No entanto, um mergulho noturno nos esperava. A intenção era surpreender as tartarugas e fotografá-las, além de tentar conseguir alguma imagem sugestiva daquele ambiente fantástico.
Equipar-se, vestindo as roupas que estavam molhadas desde o primeiro mergulho, na noite fria do cerrado goiano, não foi agradável. O que ajudou foi a visão de um céu extremamente claro e cheio de estrelas. O alívio só chegou quando entramos no lago, com a água praticamente morna. Os troncos apodrecidos no fundo, cobertos de algas, que de dia faziam desenhos alegres entre os raios de Sol que os iluminava, agora pareciam sinistros esqueletos que apareçam tão de repente na água preta e transparente, quanto mais rápido passava neles os fachos das nossas lanternas. Mas o espetáculo maior ficou para quem não mergulhou: do alto da furna o jogo de luzes na água azul do lago foi atração extra.
A descida no inferno
No dia seguinte, começamos logo cedo os preparativos para o terceiro mergulho. Dividimos a equipe para um melhor aproveitamento do trabalho, ficando o Werneck responsável pela produção de mais imagens, em dupla com Didu, e eu, com Maurício e Marcelo, para determinar definitivamente o desenho do fundo do lago.
Nos mergulhos anteriores, o GREC tinha definido em 50m a profundidade máxima, pelo fato que eles à época não dispunham de equipamento adequado, ficando em aberto a possibilidade de uma maior extensão da própria caverna que se abria no fundo do lago. Com lanternas e cabo guia, iniciamos a descida exatamente no lugar no qual, no dia anterior, tínhamos entrado e encontrado o sifão alagado. Após alguns metros, Maurício, com problemas de compensação, faz sinal e abandona. Marcelo e eu, agora na frente da entrada da cavidade; iniciamos a exploração. Ele fica servindo de base para o cabo guia (a 35m), enquanto eu início a subida. Sempre em contato com a pedra, subo até 22m, esta vez só pedra em alma de mim. Atrás, nada. No alcance da lanterna e por ser água extremamente clara, estimo que ainda existam várias dezenas de metros. Resolvo voltar para continuar pelo fundo, para tentar determinar a profundidade máxima.
Alcançando o Marcelo, continuei com ele a descida, cuidando de não encostar no fundo para não suspender o sedimento, típico das cavernas calarias. Ao chegar nos 50m, percebo que nas entranhas da rocha têm muito mais água. Uma olhada no meu manômetro e no do Marcelo, está tudo bem, embora como planejado ele terminará o ar antes de mim, provavelmente no final da subida. Ele saiu de cima com 2.2001 e eu com 4.4001 e duplo regulador. O plano era de não ultrapassar em todos os casos os 60m. Decido por continuar. Os efeitos da narcose já estão mais do que evidentes: 53m, 56m, 58m. Paro, olho para baixo, só no meu campo visual enxergo talvez mais uns 20m para baixo. A luz fraca nos ilumina e ainda consegui iluminar as pedras lá no fundo a uns prováveis 80m de profundidade. Instintivamente olho para cima: uma mancha azul intensa está lá em cima, numa inclinação de cerca de 45°, enxergo através da abertura a superfície do lago e, o que é mais incrível, a minúscula silhueta da equipe de apoio.
Sob forte efeito da narcose, faço um esforço enorme para desistir da idéia de alcançar o fundo do inferno, ou talvez a entrada. Mais uma olhada aos manômetros e a decisão de subir se torna inevitável. O Aladim que estava usando marcava 60,2m. O ar no colete equilibrador era o suficiente para alcançar uma pequena flutuabilidade: inicio a subida lenta, descarga do colete na mão. Chegando ao cabo guia da descompressão a 12m, esvaziamos totalmente os coletes por medida de segurança e, de olho no Aladim, iniciamos uma ainda mais lenta subida pelo cabo. O Aladim em A1 indica deco a quatro metros, onde paramos, passando para dois metros alguns minutos depois.
Terminou assim o mergulho, através do qual conseguimos redesenhar parte do fundo da caverna, ficando porém em aberto o real tamanho e profundidade da mesma.



Foto: Sergio Costa

Processo de descida de mais de 1 tonelada
de equipamentos necessários à expedição
na dolina de 45 metros de desnível.
Foi utilizado um sistema de tirolesa dupla, com contra-peso desenvolvido pelo
GREC-DF.





Esquema mostrando o corte lateral do
Buraco do Inferno, apresentando um dos conductos principais da caverna, que
atinge mais de 60 metros, com o teto a aproximadamente 13 metros.

Conclusão
O Buraco do Inferno fica em propriedade particular não sendo permitida a entrada de qualquer pessoa. Por essa razão, os interessados em mergulhar nesse santuário ecológico devem entrar em contato com o supervisor de mergulho do GREC, Maurício Borges de Carvalho - Caixa Postal: 142.210 ~ CEP 70349 - Brasília -DF.
 

 
MERGULHANDO EM ALTITUDE COM 0 ALADIM
Os três mergulhos no Buraco do Inferno foram feitos a mais ou menos 800m acima do nível do mar, o que os coloca na categoria de mergulho em altitude. A principal diferença desse mergulho, que é qualquer atividade subaquática realizada acima de 100m acima do nível do mar, é a diferença da variação de pressão.
Por exemplo: se em um mergulho ao nível do mar você sai de uma A TM, quando você chega aos dez metros a pressão passa a ser de duas A TM. No. caso de um mergulho em altitude, onde a pressão atmosférica é de 0,5 ATM, esse mesmo mergulho a dez metros tem uma pressão absoluta de 1,5 ATM. Mas note o seguinte: as variações da pressão no primeiro caso dobrou e, no segundo, triplicou na mesma coluna d'água.


Foto: Marcus Werneck
Procedimento de descompressão após o mergulho a 60 metros
Como foi mostrado, a pressão varia de forma diferente, ou seja, é mais rápida. Sendo assim, no mergulho em altitude, o mergulhador está mais propicio aos acidentes de efeitos diretos da pressão relacionados com a Lei de Boyle-Mariotte, como, por exemplos, Embolia Traumática pelo Ar (ETA) e barotraumas. No caso da descompres-são, deve-se ter cuidado especial, pois as tabelas padrão só devem ser usai após se converter a profundidade a ser atingida para a sua equivalente ao nível do mar pelas tabelas de conversão.

Tomando como exemplo o mergulho do Sergio:
- 60m (200pés) / 21 - a 800m acima do nível do mar, entra-se na Tabela A. Com a profundidade real de 200 pés e faixa de altitude (por segurança 3.000pés), acha-se a profundidade convertida de 223 pés. Essa é a profundidade para só consultar a tabela padrão que dá, em 230pés / 25' (por segurança), quatro paradas, sertolo 4' / 40pés, 8' /30pés, 22' / 20pés e 3 7710pés.

Agora, é preciso converter as profundidades das paradas de descompressão da tabela padrão para as equivalentes no mergulho em altitude. Usando a Tabela B, as profundidades passam a ser 4' / 36pés, 8' / 27pés, 22' / 18pés e 3 7' / 9pés.
Quando você fizer algum mergulho em altitude, lembre-se desses três itens importantes:
a) que se deve chegar na altitude do local de mergulho 12h antes de mergulhar, caso contrário, deve-se levar em consideração o seu nitrogênio residual, resultante da variação do nível do mar para o local de mergulho/
b) se o profundímetro utilizado for a coluna d'água deve-se dispensar a Tabela A, já que a profundidade indicada é, na verdade, a sua equivalente ao nível do mar, pois esse instrumento tem o seu funcionamento regido pela aplicação direta da Lei de Boyle-Mariotte. No caso de outros profundímetros, eles devem ter mecanismos para zerá-los na altitude do mergulho, sendo que eles indicam a profundidade real, necessitando do uso da Tabela A;
c) no caso de intoxicação por N2 (narcose) no mergulho em altitude, o limite será um pouco maior, já que nesse caso o que influencia é a pressão absoluta.
No Buraco do Inferno, se fossem utilizadas as tabelas, o mergulho seria quase impossível devido a grande quan-tidade de ar disponível que seria preciso, além da mobilização de equipamentos para que fossem montadas as etapas de descompressão. Por isso, foi utilizado o Aladim (veja Revista Merguar, nº 37, seção Equipamentos), que está programado para mergulhos até 4.000m de altitude. Ele trabalhou na fase M1 que abrange os mergulhos de 750m a 1.550m acima do nível do mar. Forneceu ao Sergio, para o mergulho acima descrito, somente duas etapas de descompressão, sendo uma a quatro metros e outra a dois metros (profundidades já convertidas), não totalizando nem 12' de descompressão.
O Aladim só considera mergulho em altitude os mergulhos acima de 750 m, ao contrário dos procedimentos de tabela.
Realmente, os deco-brain estão valendo o seu preço, que não é muito maior do que um bom console que não possui rodas essas funções.
 
Conheça mais sobre o Buraco do Inferno
 
 
OBS: Na matéria original constam outros fotos