Betty Bomber
Mergulhando em um bombardeiro G4M1 Betty
Truk Lagoon: Um Notável Museu Submerso
Por: Nestor Antunes de Magalhães

 

 

Era a nossa rotina em Truk. Cedo, todas as manhãs, o guia Erick, afixava em um mural da sala dos mergulhadores na popa do SS Thorfinn, a relação dos naufrágios e suas profundidades. Eram sempre cinco mergulhos diários que realizávamos ali no atol: quatro diurnos e um noturno.
Naquela manhã, mais ansioso do que curioso, vibrei ao verificar que o nosso 4º mergulho seria no naufrágio de um bombardeiro japonês Betty. O Erick, sabendo do meu gosto particular por aviões japoneses, azucrinava, repetindo a cada momento:

_ Néstor, uhuuu, Betty bomber, Betty bomber!!!


Logo após o café, ficamos atentos ao briefing matinal do Capitão Higgs. O primeiro mergulho do dia sempre iniciava com aquele de maior profundidade e seria no Rio de Janeiro Maru, um navio de forte apelo histórico pois havia trazido ao Brasil nos anos 30, boa parte da imigração japonesa.
Está adernado a boreste, com os seus 140 metros e quase 10.000 toneladas de deslocamento deitados no leito marinho. Ao que parece, o navio foi alcançado por duas bombas de 500 kg quando do ataque americano a base, em 17 Fevereiro de1944, afundando na manhã seguinte.
Fico encantado com as informações que o capitão nos transmite. O Rio de Janeiro Maru foi construído em 1930 e era um belo navio de passageiros com oito cobertas. Foi requisitado pela Marinha Imperial japonesa em 1940 e transformado em embarcação de apoio a submarinos (submarine tender). Agora, 68 anos após o afundamento, seu costado de bombordo está a 26 metros da superfície. Mas isto era outra história.

Meu interesse se prendia no Betty. Logo o Capitão Higgs projetou no telão o desenho do naufrágio do bombardeiro. Tudo indica que o avião foi abatido no dia do ataque, a Operação Hailstone, quando se preparava para aterrisar na pista da Ilha Eten. Mergulhou no mar a cerca de 130 metros da linha de praia, em um ponto a sudoeste da ilha. Minha nossa!

Estava mais para o final da tarde em Truk Lagoon quando partimos com a lancha de nossa base, o SS Thorfinn. Éramos três mergulhadores: o português Luís Mota, o guia trukês Erick e eu. O mar não estava muito calmo e soprava um brisa morna com cheiro de terra. Em pouco tempo já manobrávamos no local do naufrágio e, como sempre, o guia localizava o ponto exato para lançar o ferro.


O Betty Bomber segundo o Capitão Higgs -
SS Thorfinn
 
Agora a lancha jogava pois havia ondas um tanto incômodas e isto dificultava a colocação do equipamento. Uma tralha infernal, pesada e desconfortável. Nós, bichos terrestres, para penetramos no mundo subaquático, necessitamos vestir, calçar, morder, atar e ou clipar todo este equipamento. É a roupa, nadadeiras, colete, mostradores, apêndices, máscara, etc, etc, e culmina com o pior: nove quilos de lastro de chumbo. Uma tortura do cacete, mas...como vale a pena!
Entramos na água com um giro de costas. Sempre um arrepio ao percorrer aquele metro, uma queda cega da borda da lancha até a superfície. Reunimo-nos à popa e o guia já dá o comando de imergir. Mas como? É rápido demais para mim. Um tanto atrapalhado, com a preocupação de esquecer alguma coisa importante, confiro os instrumentos, verifico pela décima vez se a câmera fotográfica está clipada, prendo o painel de mostradores no mosquetão correto e giro a coroa do relógio de mergulho. Caço a traquéia do colete equilibrador e dreno o ar que escapa sibilando.
 
Então tudo fica azul. Meus companheiros já seguem mais abaixo e logo é possível ver a sombra do avião. É um momento muito esperado por mim, realmente emocionante. O mais famoso bombardeiro-torpedeiro japonês da Guerra do Pacífico. Minha nossa!
A fuselagem lembra um charuto, não afina em direção a cauda e isto é uma característica singular do Betty. Restabeleço a flutuabilidade neutra e nado perto da torre do artilheiro de ré. Está parcialmente desmantelada e pelo desenho do Capitão Higgs, deveria haver aqui, na areia ou sobre o profundor, um canhão de 20 mm. Tinha um interesse especial em examinar esta arma de perto. Na realidade era uma cópia do Oerlikon, alimentado por um tambor com 60 cartuchos, flexível e atirando para trás. A partir de 1942 surgiu uma versão com tambor de 100 cartuchos.
Atacar uma formação destes bombardeiros pela retaguarda era uma tarefa arriscada para os caças americanos. Uma só granada AE de 20 mm, bem colocada, poderia dar cabo de um Hellcat. Infelizmente não encontro o canhão, mas verifico que o grande leme vertical está caído ao lado da fuselagem, arrancado na sua junção com o corpo do avião. Não há marcas de balas da US Navy.

O alumínio é gosmento, liso em algumas partes, cheio de vida marinha em outras. Esponjas, corais moles, ouriços e peixinhos por toda parte. Cardumes deles, sempre buscando proteção em qualquer reentrância ou sombra.
 
 
 
Tenho comigo, no bolso do colete equilibrador, uma bandeira da Marinha Imperial e o plano de clicar uma foto na torre do artilheiro de dorso. Seria a glória suprema! Sinalizo ao Luís e ao Erick a minha idéia e nado até a torre. Eles dizem que não. É difícil penetrar por fora e será necessário entrar no Betty e subir para a torreta. Nado até a lateral da fuselagem. Ali está uma janela em forma de bolha, muito semelhante a que o hidro-avião patrulha americano Catalina tinha em cada bordo. Acredito que era a posição de uma metralhadora. Está aberta pela metade. Roçando o meu cilindro, caçando as mangueiras e girando o corpo, consigo penetrar dentro do bombardeiro. É uma passagem apertada. Puxa vida, estou dentro de um Betty da II Guerra Mundial! Também no seu interior a vida marinha permanece abundante. O assoalho é em metal ondulado, a semelhança do grooving de uma pista de pouso e o espaço interno um tanto acanhado. Em um canto está um cilindro coberto por uma camada de coral vermelho. Seria um extintor ou um tubo de Oxigênio? Depois surge uma caixa que parece muito com o rádio, mais ao lado, alguns destroços que não identifico e uma garrafa. Cada objeto tem uma história para contar. Lá na frente está cabine dos dois pilotos. Ficou torcida. Com o impacto na água o nariz do avião partiu e girou à esquerda. É claro que começo a "viajar".
 
No eletrizante livro de Martin Caidin, Chacina nos Céus do Extremo Oriente, existe o testemunho detalhado dos acontecimento da Batalha Aeronaval da Malásia. É uma valiosa descrição do Tenente Sadao Takai, piloto de um dos Betty que bombardearam e torpedearam o encouraçado HMS Prince of Wales de 43.700 toneladas e o cruzador pesado HMS Repulse de 32.200 toneladas.
E se esse avião fosse o do Tenente Takai? De joelhos no meio do bombardeiro e olhando para a cabine, imagino os dois pilotos lado a lado, Takai sentado no assento esquerdo. As cabeças como bolas de couro marrom balançando compassadas com os sacolejos do bombardeiro que avança no meio de uma tempestade de fogo antiaéreo. Os dois motores Mitsubishi Kasei 11 rugindo à velocidade máxima e o Lança Longa pronto para ser alijado. Isto é História!
Atingidos por bombas e torpedos, os dois gigantes afundaram em menos de uma hora. Recordo que a blindagem do cinturão (main belt) que envolvia o casco do Prince of Wales tinha 370 mm de aço. Como é possível um torpedo, mesmo sendo um Lança Longa, romper tão formidável proteção?
Pairando no meio de um cardume de peixinhos vermelhos, subo até a torreta de dorso.
Será que foi daqui que o artilheiro do Betty que conduzia o Almirante Yamamoto viu os caças P-38 americanos, vindos de Guadalcanal, que iriam abater o seu avião sobre Bougainville, talvez a mais célebre interceptação aérea da guerra? É uma posição apertada, mas se tem um excelente campo de tiro para uma metralhadora Tipo 92 de 7,7 mm, arma flexível que ficava instalada aqui. Apanho a bandeira da Marinha Imperial do colete e abro-a sobre a fuselagem por fora da torre. Mesmo sendo uma réplica, a bandeira tem um forte apelo. É bonita, é mobilizadora e tem energia. Faço isto em memória de todos os soldados japoneses que morreram no mar, em terra e no ar quando do ataque de 17 de Fevereiro de 1944.
O momento é solene e o Luís fotografa a cena. Depois é o Erick que também quer e, finalmente, o Luís ocupa a torre para clicar uma foto sem máscara e regulador.
Estamos a 20 metros e, mesmo ele sendo um instrutor PADI e mergulhador primoroso, acho uma imprudência. É necessário muito controle e concentração para realizar todas as etapas desta operação. Um erro na seqüência e haveria o risco de um grave acidente.
 
 

Nado ainda no interior do Betty. Está escuro. Não acho restos humanos, nem armas ou munição. Todavia eu sei que aqui dentro, a alguns anos atrás, foram encontradas 38 bombas incendiárias que, por questões de segurança, foram resgatadas por mergulhadores. Também não aparecem furos das balas americanas como tinha visto no naufrágio do torpedeiro Jill.
Espremendo o corpo de volta pela bolha lateral da fuselagem, alcanço o fundo de areia. Ali permanecem alguns cilindros de Oxigênio e um dos assentos dos pilotos. O guia aponta para a cadeira de alumínio e, por gestos, explica-me que o piloto ejetou. Piadista até embaixo da água.

A asa de boreste está levantada, tem um pedaço pequeno da extremidade arrancado e a de bombordo permanece com a ponta enterrada no leito marinho. Lembro que o Betty não tinha blindagem para a tripulação e ou motores. Muito menos tanques de combustível auto-obturáveis. Para conseguir um melhor raio de ação, boa velocidade, carga de bombas e compatível maneabilidade, os projetistas japoneses sacrificaram esta proteção, condenando o bombardeiro a ser um alvo relativamente fácil. O apelido de Charuto Voador deveu-se não só pela forma da fuselagem, mas pela facilidade com que o bombardeiro se incendiava ao ser atingido em combate. Também era maldosamente apelidado de Isqueiro de Um Só Clique.
 

Os motores Kasei não estão em seus lugares. Acho que com a pancada na superfície do mar, saltaram à frente. Após um breve busca, encontramos ambos a alguma distância do nariz do bombardeiro. É necessário procurar à frente pois os dois motores radiais não são vistos do naufrágio.

Tempo de fundo 30 minutos e o ponteiro do meu manômetro já está perto da faixa vermelha.

É hora de subir. Não há corrente, a temperatura da água permanece em 29°C, mas a visibilidade, que não era muito boa, começa a diminuir pois lá em cima o sol tangencia a linha do horizonte de Truk. Emergimos lentamente e deixamos o bombardeiro em paz, pousado no fundo, dormitando na areia branca há 68 anos. É um avião maciço, de asas e fuselagem largas. Mesmo assim, eu tinha impressão de que ele fosse maior. Lembro que esta fuselagem roliça, em 1945, recebia o encaixe de uma bomba Kamikaze Ohka, também conhecida por Jinrai Baka. Recordo do ataque do Jinrai pilotado pelo Almirante Ukaki, lançado por um Betty nas proximidades de Okinawa que, como um meteoro, foi explodir no hangar dois do porta-aviões USS Savo Island. Banzai!
Ah, mas existe um final melancólico: foram dois Betty, desarmados, pintados de branco e com a cruz vermelha nas asas e fuselagens, que transportaram a comitiva japonesa para assinar a rendição. Era o final da II Guerra Mundial.
Há ondas na superfície e é necessário cuidado para subir a bordo, pois é preciso galgar uma escada na popa, que sobe e desce, fazendo com que as afiadas lâminas dos dois hélices passem perto dos mergulhadores.

Mergulhar em um bombardeiro Betty foi algo inesquecível.
 

 


Nestor Magalhães e os guias Tomo e Erick

 

Nestor Antunes de Magalhães é membro do Grupo BdU - Brazilians discovering Unterseeboote, um grupo especializado no estudo histórico da atuação dos submarinos alemães na costa brasileira durante a Segunda Guerra, colaborando com informações para as expedições de mergulho nos U-Boats naufragados.
Maiores informações: http://u-boats.sites.uol.com.br