Kate |
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Tínhamos dois guias a bordo
do SS Thorfinn, Tomo e Erick, ambos mergulhadores primorosos. Diariamente,
era sempre um deles quem nos conduzia aos diversos naufrágios de
Truk Lagoon. Quatro mergulhos diurnos e um noturno. O outro, invariavelmente,
permanecia no comando da lancha. Ambos eram trukeses, mas falavam um inglês
perfeito e logo estabelecemos uma fraterna amizade. Sempre alegres e prestativos,
tinham grande curiosidade pelo Brasil. Tomo era o mais alto e de maior idade.
Como um típico micronésio, tinha a tez morena e os cabelos
compridos, parecendo um venerável chefe índio saído
do filme Dança com Lobos. Já Erick era pequeno, inquieto e um pouco mais jovem. Não tinha o olho direito, sempre rindo. Ensinei-o a falar em português "tartaruga", isto logo depois dele avistar uma na água e gritar, turtle! Depois disto, sempre que me via, gritava: - Tarrrtaruca!!! |
Eu ficava intrigado,
estupefato de como eles localizavam o ponto exato do naufrágio
na laguna. Isto sem qualquer bóia na superfície, marcação
em terra e muito menos GPS. Enquanto um ficava à proa, resmungando
as instruções em trukês, o outro mareava a lancha
de maneira a ficar exatamente sobre o navio japonês. Depois lançavam
um simples gancho à guisa de âncora que, não sei como,
unhava o casco do naufrágio a 30, 40, 50 metros nas profundezas.
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Erick
escutava com atenção as minhas histórias sobre o
ataque a Pearl Harbor, o afundamento dos encouraçados Prince of
Wales e Repulse, torpedeados e bombardeados pelos Betties ou sobre os
canhões de 460 mm do encouraçado Yamato.Ficava impressionado.
Rodava e piscava seu único olho em uma careta, como um Horatio
Nelson trukês e repetia: uuhuu, battleship! battleship! Betty bomber,
Betty bomber!.
Um dia perguntei a ele onde estaria localizado o naufrágio de um Zero. Não valia os quatro que havíamos explorado no porão Dois do Fujikawa Maru. Queria um inteiro, pousado no fundo de areia branca da laguna. Erick disse-me que sabia onde estaria um destes caças, ou melhor, dois destes lendários aviões. Pedi que me levasse até lá. Depois implorei e mais tarde, subornei-o com um bonito boné bordado da Sea Divers, presente do meu velho amigo Júlio Silva. Ele então cedeu. O sol já estava deitando no horizonte de Truk Lagoon quando pulamos na lancha. Nos acompanhava o meu dupla, o inglês Patrick. Em questão de minutos já manobrávamos na área dos naufrágios. A bombordo estava a Ilha Etten e na proa, a Ilha Dublon. O mar permanecia calmo e soprava uma gostosa brisa morna quando rompemos a superfície e penetramos no mundo azul, silencioso e sem gravidade. Sempre a magia do mergulho, com todo o seu encantamento. Com o guia à frente, nadamos na direção de uma grande sombra que se destacava no fundo. Era um Zero! Todavia, se apresentava desmantelado. Havia placas de alumínio, cabeleiras de fios e fragmentos de aço espalhados na areia. O que restava do avião, crivado de orifícios dos projéteis das metralhadoras Browning .50, permanecia emborcado, rodas para cima, cockpit enterrado no leito marinho. Sinalizo ao Erick. Este não vale, onde está o outro? |
Ele indica uma nova direção
e emergimos seis metros do fundo. Mais a frente aparecem dois pequenos caminhões
e alguma munição de 75 mm. São diversos estojos de
artilharia e outros destroços que não consigo identificar.
Mais alguns minutos e o guia desce ao fundo e, triunfante, aponta para um
novo Zero. Afobado, entusiasmado, emocionado, nado até o avião. O meu dupla segue logo atrás. Dor nos ouvidos pois esqueci de compensar. Faltam as extremidades das asas e a cauda. Não é um Zero, as asas são muito largas, o cockpit é alongado. O motor não está no seu lugar. Estranho. Meu Deus, este naufrágio é um Kate! É um bombardeiro-torpedeiro baseado em porta-aviões Nakajima B5N Type 97 Kate, uma aeronave muito avançada para a época da sua introdução na Marinha Imperial, sendo o único bombardeiro-torpedeiro do Japão embarcado quando do início da Guerra do Pacífico. Foi um engenho essencial no afundamento dos porta-aviões USS Lexington no Mar de Coral, USS Yorktown em Midway e USS Hornet na Batalha de Santa Cruz, Também foi um Kate que, durante o ataque a Pearl Harbor em 7 Dez 41, atingiu o encouraçado USS Arizona com uma única bomba de 800 kg que penetrou 150 mm de aço da blindagem na coberta da proa, indo detonar em um dos paiois de munição do grande navio. A explosão foi catastrófica, afundando o encouraçado em nove minutos e matando 1.177 homens. Atualmente o USS Arizona é uma tumba submarina e memorial para os mais de 900 marinheiros e fuzileiros que ainda se encontram a bordo. Neste dia memorável estava embarcado em um dos 49 Kates da primeira onda de ataque, o comandante da operação aérea, Mitsuo Fuchida. Que história! |
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A direita:
Diagrama do ataque de um avião torpedeiro
Para ter sucesso, o avião precisava descer a apenas 9 metros acima da superfície. O torpedo mergulhava a 10 metros e depois cruzava a uma profundidade de 6 metros. |
Mas
retorno ao presente nadando ao redor da cabine do destroço. Está
ficando cada vez mais escuro pois em Truk já ocorre o fim do dia
e se inicia nas profundezas, a troca da luz pelas sombras. Consulto o relógio:
são 17h 38 min. A profundidade é 24 m e a temperatura da água
de 29 ºC. O assento do piloto está no seu lugar e é ainda possível ver o manche entre um cardume de peixinhos. É um manche diferente, para ser seguro por ambas as mãos, tem o formato de uma borboleta. À frente os restos do painel, os pedais que comandam o leme e, nas laterais, uma série de comandos e peças que desconheço a função. Uma delas parece ser um suporte de bússola. No espaço para os três tripulantes, sentados em tandem, não encontro restos humanos e nem a metralhadora flexível de ré. Uma olhadela à frente confirma que o motor Nakajima NK1b Sakae, com 14 cilindros dispostos em duas linhas radiais e 1.115 hp, não está mais na sua posição. Com a pancada na água, o motor, mais pesado, deve ter saltado longe. Nado a sua procura, acho que uns 20 m à proa. Só encontro pequenos bancos de coral e areia branca. Algumas versões deste torpedeiro, estavam armadas com duas metralhadoras 7,7 mm, fixas na capota do motor e que atiravam sincronizadas através do giro da hélice. As armas não estão por ali. |
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Examino
agora as asas e a fuselagem com atenção. Estou sem luvas
e sinto pelo tato que ainda há restos de tinta e a presença
de algumas cracas afiadas. Como já havia observado, o avião
perdeu seu leme e no local existem algumas arestas aguçadas, é
necessário ter cuidado pois o alumínio não apresenta
decomposição, permanece bem duro. Procuro, mas com esta
luz já não é mais possível achar buracos das
balas das metralhadoras dos Hellcats da US Navy.
Confiro os instrumentos. O manômetro alerta que o meu ar está chegando ao fim e que devo encerrar o mergulho. Como esgota rápido! |
É
hora de subir, mas antes nado com o dupla sobre o avião. Aqui de
cima o Kate adquire uma cor azulada, fantasmagórica, começa
a dissimular-se com o fundo. Mas antes tem a foto deste momento solene,
inesquecível e fazemos com a bandeira da Marinha Imperial japonesa,
em uma silenciosa reverência aos marinheiros, soldados e pilotos japoneses
que morreram naquele dia. Minha nossa! Colocar a mão em um Kate, melhor ainda, achá-lo dormitando no fundo de Truk Lagoon, provavelmente abatido em 17 Fev 44 quando tentava decolar durante o ataque americano. Ele permanece aqui, neste mesmo local, há 68 anos. E se esse avião tivesse voado em Pearl Harbor? Ou fosse o do Comandante Fushida? Mais sensacional ainda, tivesse bombardeado o Arizona? Hummmm, não seria o Kate do Tenente Taisuke Maruyama, que enfiou um Lança Longa na rechonchuda barriga do Yorktown em Midway? Na superfície já é quase noite, o mar parece um lago e o céu de Truk se encontra estrelado. Que mergulho! |
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